quinta-feira, 29 de setembro de 2016

TEXTO BÁSICO DE FILOSOFIA - DANILO MARCONDES


1. CONTEXTO HISTÓRICO 
René Descartes nasceu em La Haye, em 31 de março de 1596. Órfão com um ano de idade, de saúde frágil, passou a maior parte de sua infância em sua cidade natal. Com onze anos foi enviado para o colégio jesuíta de La Flèche, de onde saiu em 1615, para conhecer o mundo. Este colégio, na época, era reputado como um dos melhores colégios da França. Contudo, o espírito inquieto do jovem estudante o impulsionou para fora da academia. No seu entender, esta não ensinava propriamente a verdade das coisas, mas se contentava com a repetição dos ensinamentos dos antigos, principalmente de sua recepção no transcurso da Idade Média. É curioso que um dos pensadores que mais marca o pensamento ocidental tenha feito uma carreira à margem da universidade.
Foi com esse tipo de preocupação que o jovem, ao terminar os estudos nessa escola jesuíta, decidiu viajar pelo mundo, com o intuito de explorar outras terras e costumes, fazendo do "mundo" um objeto de leitura, como se fosse um livro, que requereria um novo tipo de análise. O mundo que então se descortinava era ainda um mundo "mágico", imprevisível, cheio de incertezas, capaz de atiçar a imaginação de um jovem pensador.
Para uma melhor compreensão do assunto, devemos retomar brevemente o contexto histórico no qual René Descartes viveu. Esse período, chamado de Idade Moderna (1453-1789), foi caracterizado por dois fatores marcantes: o Absolutismo e o Mercantilismo.
Com o declínio do sistema feudal, marcado pela falta de um líder centralizado (as terras estavam divididas entre os senhores feudais), começam a surgir os Estados Nacionais, em que a figura do rei volta a ter o papel de unificadora do poder. Dessa maneira, os territórios passaram a serem delimitados por fronteiras nacionais, sendo o rei, o único líder dessas terras. Os primeiros Estados Nacionais a serem formados foram Portugal, Espanha, Inglaterra e França. Assim,  os monarcas conquistavam cada vez mais poder, tomando suas decisões de maneira absoluta, não sendo necessário prestar contas para ninguém (é essa a razão pela qual o termo absolutismo é empregado).
A partir da criação dos Estados Nacionais e da ascensão da figura de um rei absolutista, surge o “braço econômico” desse novo sistema: o Mercantilismo, cuja principal característica é o controle do Estado na economia, embasados na teoria de que o país que possuísse maiores reservas de metais (ouro e prata) seria a nação mais poderosa do mundo. Com a ascensão da burguesia e o declínio do sistema de servidão medieval, começam as primeiras formas de se fazer capitalismo, através do fortalecimento das relações comerciais. Dessa maneira, os Estados começam a investir na exploração de novos mercados, com o sonho de conquistar territórios inexplorados e possuírem riquezas nunca antes vistas.
 Esse momento histórico é conhecido como o período das Grandes Navegações, em que países como Portugal e Espanha lançam-se ao mar, em busca de novas terras  e rotas comerciais, a fim de se tornarem grandes potências imperiais.  Apesar de René Descartes ter nascido em 1596, alguns anos depois da criação dos primeiros Estados Nacionais e do desenvolvimento mercantil, o cenário histórico ainda estava carregado por esses dois fatos, caracterizando um período de transição. Dessa maneira, Descartes também dá sua importante contribuição filosófica e científica nesse contexto de intensas mudanças. 

2. IMPORTÂNCIA DE SUA OBRA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Em 1637, publica Discurso do método, obra inaugural da filosofia moderna, escrita em língua vulgar, isto é, o francês. Naquela época, as obras filosóficas eram escritas em latim e estavam voltadas para um público "douto", constituído do círculo exclusivo de iniciados às questões propriamente filosóficas. Descartes tinha, porém, um outro propósito, o de alcançar um amplo público, ou seja, todas as pessoas dotadas de "bom senso" ou "razão", de tal maneira que os assuntos humanos em geral estivessem ao alcance de cada um. Na verdade, antes de Kant, ele propugnava por um uso público da razão.
E esse uso público da razão não admitia discriminações ou limitações de gênero. As mulheres, até então, não eram consideradas seres racionais no sentido completo do termo. Elas não eram interlocutoras do ponto de vista filosófico, da razão. Descartes tinha entre suas interlocutoras preferidas a princesa Elisabeth, da Alemanha, com a qual teve uma profícua correspondência filosófica. Ele a considerava um ser particularmente bem dotado racionalmente, superior a seus companheiros doutos, imersos que estavam, no seu entender, em preconceitos. Uma pessoa sem preconceitos era ideal para um pensador que começava filosoficamente com um "discurso do método". O novo discurso vem acompanhado da afirmação da igualdade de gênero entre os sexos.
E como se tratava de um "discurso do método", a sua preocupação central residia no como conhecemos, no como podemos ter acesso a idéias verdadeiras, que fossem imunes ao erro, quando perseguidas segundo um procedimento metódico, sistemático. Ele se voltava contra todo pré-conhecimento, todo pré-conceito, pois a maneira mediante a qual pensamos nos induz freqüentemente ao erro, à falsidade, à mera aceitação do senso comum, daquelas idéias que foram sedimentadas no nosso modo habitual de pensar. Descartes propugnava por um pensamento jovem, aberto à crítica e aos questionamentos, capaz de exercer uma dúvida cética e de resistir à mesma dúvida graças a uma razão aberta ao questionamento de seus próprios princípios. Ele lutava, portanto, por um mundo onde a fé não ordenasse as relações humanas, mas ficasse confinada a um lugar específico, ao do culto de cada um, não invadindo as esferas dos costumes, da política, da filosofia e da ciência em geral. Moderno, ele defendia a idéia de que a razão deveria permear todos os domínios da vida humana, numa atividade libertadora, pois voltada contra as mais diversas formas de dogmatismo.

O texto Discurso do Método de Descartes, tem um caráter autobiográfico e demonstra uma inquietação com a formação tradicional que recebera, sugerindo uma revisão na vida e tendo como principal foco o próprio pensamento e o estudo das coisas do mundo. Concluiu que tudo que havia estudado até então não se apresentava suficientemente seguro para saber das coisas da vida e que suas dúvidas haviam, então, se multiplicado. Quanto mais estudava, mas via-se um ignorante. Para ele a experiência devia ser validada sempre através de uma reflexão sobre a validade do que revela.

3. LEITURA COMENTADA

3.1 A FORMAÇÃO DO FILOSOFO

Sobre a Filosofia demonstrava admiração pelos filósofos, dotados de um rigoroso saber, embora não a considerasse como um caminho seguro porque  com tudo o que havia sido pesquisado, continuava gerando questões tendo em vista que produziam diferentes pensamentos sobre as mesmas coisas.
As demais ciências, por trazerem alguns princípios da Filosofia, também não lhe pareciam sólidas e, mesmo com toda a significância para a época, não o atraia. Não queria para si as mesmas bases científicas que apenas lhe parecessem consolidadas.
Por não estar convencido do caminho que percorreu até então na busca do conhecimento verdadeiro, decidiu abandonar o estudo das letras, o  qual haviam lhe apresentado como o caminho a ser percorrido, e buscar em si próprio, no mundo, nas experiências de outras pessoas e em suas próprias reflexões a forma de chegar à verdade.
Foi buscar sozinho, em outra cidade, desprovido das paixões  e dos desejos, seu método para evolução científica. Acreditava que afastando-se do senso comum poderia ter maior segurança, devido a um método que poderia adotar as respostas conseguidas como verdadeiras.
Descartes  dizia que todo homem é dotado de razão ou bom senso na justa medida e de forma igualitária, mas a racionalidade não era suficiente para levar no sentido do conhecimento verdadeiro, por cada um empregá-la de forma diferente, considerando coisas diferentes.
Assim, criou suas regras que de forma simples, ao serem aplicadas na sequência, ofereciam segurança nos resultados alcançados.

3.2  AS  REGRAS DO MÉTODO

Descartes, cria suas próprias regras investigativas e segue-as sem fugir do que estabelecesse, seguindo a sequência definida, por achar que ofereciam menos chance de dúvida comparando com outras formas anteriormente utilizadas.
Primeiro - Regra da Evidência: evitar precipitar-se e acreditar na primeira impressão, mas só adotar como verdadeira quando já não oferecesse qualquer probabilidade de refutação e se apresentasse de forma indubitável.
Segundo – Regra da Análise: fazer análise de forma fragmentada de tal maneira que um a um os objetos analisados produzissem conclusões seguras, sem chance para equívocos;
Terceiro – Regra da Síntese: ordenar o pensamento do mais fácil ao mais complexo, de forma cautelosa, garantindo a sequência adotada, para que não haja interferências indesejadas e podendo reconsiderá-las depois;
Quarto – Regra da Verificação: garantir a totalidade das investigações  para que nada fique omisso, com a segurança de que todos os passos foram seguidos, sem margem a dúvidas.
Embora simples e fáceis, as regras estabelecidas garantiam o pensamento científico sem permitir que ficassem questões mal esclarecidas por mais complexas que se apresentassem.

3.3  A MORAL PROVISÓRIA

No texto, Descartes, traz que as questões morais não podiam ficar em suspenso até que concluísse seu pensamento, cria, então, o que chama de Moral Provisória até que a investigação cheque à verdadeira ciência da moral, baseada na natureza humana. Não se permitia deixar de obedecer aos princípios acumulados pelo fato de os terem colocado em dúvida até que pela investigação chegasse a novos conceitos. Mesmo com os que tinha alguma resistência, não achava que devesse suprimí-los criando um certo hiato entre o que era e o que poderia vir a ser.

“ E Enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, fazê-la demolir ou se ocupar a própria pessoa da arquitetura, além de ter cuidadosamente traçado o projeto, mas é preciso também arranjar outra onde comodamente se alojar enquanto durarem os trabalhos, assim eu, para não ficar em absoluto hesitante nas minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos e para não deixar de viver desde então  do modo mais feliz possível, criei para mim uma moral provisória, consistindo somente de três ou quatro máximas, que gostaria de vos expor” […] pag. 83

Primeiro: obedecer as leis e os costumes do país, assim como a religião na qual havia sido criado, pois era preciso relacionar-se com as pessoas, afastando-se o máximo possível  dos excessos e buscando em primeiro passo considerar as opiniões mais sensatas no meio em que estava inserido, mesmo que sua intenção fosse aperfeiçoá-las depois. Preferia observar os comportamentos das pessoas à sua volta a ouvir os conceitos, pois achava que nem sempre as pessoas divulgavam suas reais ideias ou delas possuíssem consciência.
Segundo: seguir firme as questões mesmo que suas escolhas se apresentassem como as mais duvidosas, desde que a escolha tenha sido por elas. Achava que mesmo com toda dúvida deveria ouvir a razão e escolher um caminho, pois pior que escolher errado seria a ausência de escolha.
Se não fosse possível a opinião verdadeira dever-se-ia seguir a mais provável que sua razão indicasse e ao adotá-la não mais colocá-la em dúvida;
Terceiro: dominar a si mesmo e seus sentimentos, mudando seus pensamentos e convicções, para desejar o que é possível alcançar para não perder-se no que está distante de sua capacidade. Como os filósofos abriam mão de bens e de uma vida confortável para seguir a busca da verdade tendo como único mecanismo o seu pensamento, ela achava que devia sentir-se feliz com o que conseguisse e o que não viesse não deveria ser objeto de lamentações. O equilíbrio seria consequência de não querer além do que fosse possível.
No último conclui que após analisar as várias ocupações das pessoas nenhuma delas lhe atraía a não ser permanecer na busca da verdade utilizando-se da sua razão e do método que havia criado para si.

“ por fim, para conclusão dessa moral, decidi fazer um exame das diversas ocupações que têm os homens nesta vida e tentar escolher a melhor; e sem pretender dizer  nada das ocupações dos outros, pensei que não podia fazer  melhor que continuar naquela mesma em que estava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e avançar o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, seguindo o método que me havia prescrito” […] pag. 85.

O fundamento do método para Descartes é que só se chega à verdade pelo caminho correto e objeto correto, caso contrário haverá conclusões equivocadas. Não basta possuir um espírito bom, mas é necessário aplicá-lo de forma correta.