1. CONTEXTO HISTÓRICO
René Descartes nasceu em La Haye, em 31 de março de 1596. Órfão com um
ano de idade, de saúde frágil, passou a maior parte de sua infância em sua
cidade natal. Com onze anos foi enviado para o colégio jesuíta de La Flèche, de
onde saiu em 1615, para conhecer o mundo. Este colégio, na época, era reputado
como um dos melhores colégios da França. Contudo, o espírito inquieto do jovem
estudante o impulsionou para fora da academia. No seu entender, esta não
ensinava propriamente a verdade das coisas, mas se contentava com a repetição
dos ensinamentos dos antigos, principalmente de sua recepção no transcurso da
Idade Média. É curioso que um dos pensadores que mais marca o pensamento
ocidental tenha feito uma carreira à margem da universidade.
Foi com esse tipo de preocupação que o jovem, ao terminar os estudos
nessa escola jesuíta, decidiu viajar pelo mundo, com o intuito de explorar
outras terras e costumes, fazendo do "mundo" um objeto de leitura,
como se fosse um livro, que requereria um novo tipo de análise. O mundo que
então se descortinava era ainda um mundo "mágico", imprevisível,
cheio de incertezas, capaz de atiçar a imaginação de um jovem pensador.
Para uma melhor compreensão do assunto, devemos retomar brevemente o
contexto histórico no qual René Descartes viveu. Esse período, chamado de Idade
Moderna (1453-1789), foi caracterizado por dois fatores marcantes: o
Absolutismo e o Mercantilismo.
Com o declínio do sistema feudal, marcado pela falta de um líder
centralizado (as terras estavam divididas entre os senhores feudais), começam a
surgir os Estados Nacionais, em que a figura do rei volta a ter o papel de
unificadora do poder. Dessa maneira, os territórios passaram a serem
delimitados por fronteiras nacionais, sendo o rei, o único líder dessas terras.
Os primeiros Estados Nacionais a serem formados foram Portugal, Espanha,
Inglaterra e França. Assim, os monarcas conquistavam cada vez mais poder,
tomando suas decisões de maneira absoluta, não sendo necessário prestar contas
para ninguém (é essa a razão pela qual o termo absolutismo é empregado).
A partir da criação dos Estados Nacionais e da ascensão da figura de um
rei absolutista, surge o “braço econômico” desse novo sistema: o Mercantilismo,
cuja principal característica é o controle do Estado na economia, embasados na
teoria de que o país que possuísse maiores reservas de metais (ouro e prata) seria
a nação mais poderosa do mundo. Com a ascensão da burguesia e o declínio do
sistema de servidão medieval, começam as primeiras formas de se fazer
capitalismo, através do fortalecimento das relações comerciais. Dessa maneira,
os Estados começam a investir na exploração de novos mercados, com o sonho de
conquistar territórios inexplorados e possuírem riquezas nunca antes vistas.
Esse momento histórico é conhecido como o período das Grandes
Navegações, em que países como Portugal e Espanha lançam-se ao mar, em busca de
novas terras e rotas comerciais, a fim de se tornarem grandes potências
imperiais. Apesar de René Descartes ter nascido em 1596, alguns anos
depois da criação dos primeiros Estados Nacionais e do desenvolvimento
mercantil, o cenário histórico ainda estava carregado por esses dois fatos,
caracterizando um período de transição. Dessa maneira, Descartes também dá sua
importante contribuição filosófica e científica nesse contexto de intensas
mudanças.
2. IMPORTÂNCIA DE SUA
OBRA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Em 1637, publica Discurso do método, obra inaugural da
filosofia moderna, escrita em língua vulgar, isto é, o francês. Naquela época,
as obras filosóficas eram escritas em latim e estavam voltadas para um público
"douto", constituído do círculo exclusivo de iniciados às questões
propriamente filosóficas. Descartes tinha, porém, um outro propósito, o de
alcançar um amplo público, ou seja, todas as pessoas dotadas de "bom
senso" ou "razão", de tal maneira que os assuntos humanos em
geral estivessem ao alcance de cada um. Na verdade, antes de Kant, ele
propugnava por um uso público da razão.
E esse uso público da razão não admitia discriminações ou limitações de
gênero. As mulheres, até então, não eram consideradas seres racionais no
sentido completo do termo. Elas não eram interlocutoras do ponto de vista
filosófico, da razão. Descartes tinha entre suas interlocutoras preferidas a
princesa Elisabeth, da Alemanha, com a qual teve uma profícua correspondência
filosófica. Ele a considerava um ser particularmente bem dotado racionalmente,
superior a seus companheiros doutos, imersos que estavam, no seu entender, em
preconceitos. Uma pessoa sem preconceitos era ideal para um pensador que
começava filosoficamente com um "discurso do método". O novo discurso
vem acompanhado da afirmação da igualdade de gênero entre os sexos.
E como se tratava de um "discurso do método", a sua
preocupação central residia no como conhecemos, no como podemos ter acesso a
idéias verdadeiras, que fossem imunes ao erro, quando perseguidas segundo um
procedimento metódico, sistemático. Ele se voltava contra todo
pré-conhecimento, todo pré-conceito, pois a maneira mediante a qual pensamos
nos induz freqüentemente ao erro, à falsidade, à mera aceitação do senso comum,
daquelas idéias que foram sedimentadas no nosso modo habitual de pensar.
Descartes propugnava por um pensamento jovem, aberto à crítica e aos
questionamentos, capaz de exercer uma dúvida cética e de resistir à mesma
dúvida graças a uma razão aberta ao questionamento de seus próprios princípios.
Ele lutava, portanto, por um mundo onde a fé não ordenasse as relações humanas,
mas ficasse confinada a um lugar específico, ao do culto de cada um, não
invadindo as esferas dos costumes, da política, da filosofia e da ciência em
geral. Moderno, ele defendia a idéia de que a razão deveria permear todos os
domínios da vida humana, numa atividade libertadora, pois voltada contra as
mais diversas formas de dogmatismo.
O texto
Discurso do Método de Descartes, tem um caráter autobiográfico e demonstra uma
inquietação com a formação tradicional que recebera, sugerindo uma revisão na
vida e tendo como principal foco o próprio pensamento e o estudo das coisas do
mundo. Concluiu que tudo que havia estudado até então não se apresentava
suficientemente seguro para saber das coisas da vida e que suas dúvidas haviam,
então, se multiplicado. Quanto mais estudava, mas via-se um ignorante. Para ele
a experiência devia ser validada sempre através de uma reflexão sobre a
validade do que revela.
3. LEITURA COMENTADA
3.1 A FORMAÇÃO
DO FILOSOFO
Sobre a
Filosofia demonstrava admiração pelos filósofos, dotados de um rigoroso saber,
embora não a considerasse como um caminho seguro porque com tudo o que havia sido pesquisado,
continuava gerando questões tendo em vista que produziam diferentes pensamentos
sobre as mesmas coisas.
As demais
ciências, por trazerem alguns princípios da Filosofia, também não lhe pareciam
sólidas e, mesmo com toda a significância para a época, não o atraia. Não
queria para si as mesmas bases científicas que apenas lhe parecessem consolidadas.
Por não estar
convencido do caminho que percorreu até então na busca do conhecimento
verdadeiro, decidiu abandonar o estudo das letras, o qual haviam lhe apresentado como o caminho a
ser percorrido, e buscar em si próprio, no mundo, nas experiências de outras
pessoas e em suas próprias reflexões a forma de chegar à verdade.
Foi buscar
sozinho, em outra cidade, desprovido das paixões e dos desejos, seu método para evolução
científica. Acreditava que afastando-se do senso comum poderia ter maior
segurança, devido a um método que poderia adotar as respostas conseguidas como
verdadeiras.
Descartes dizia que todo homem é dotado de razão ou bom senso na justa medida e de
forma igualitária, mas a racionalidade não era suficiente para levar no sentido
do conhecimento verdadeiro, por cada um empregá-la de forma diferente,
considerando coisas diferentes.
Assim, criou
suas regras que de forma simples, ao serem aplicadas na sequência, ofereciam
segurança nos resultados alcançados.
3.2 AS REGRAS DO MÉTODO
Descartes,
cria suas próprias regras investigativas e segue-as sem fugir do que
estabelecesse, seguindo a sequência definida, por achar que ofereciam menos
chance de dúvida comparando com outras formas anteriormente utilizadas.
Primeiro -
Regra da Evidência: evitar precipitar-se e acreditar na primeira impressão, mas
só adotar como verdadeira quando já não oferecesse qualquer probabilidade de
refutação e se apresentasse de forma indubitável.
Segundo –
Regra da Análise: fazer análise de forma fragmentada de tal maneira que um a um
os objetos analisados produzissem conclusões seguras, sem chance para
equívocos;
Terceiro –
Regra da Síntese: ordenar o pensamento do mais fácil ao mais complexo, de forma
cautelosa, garantindo a sequência adotada, para que não haja interferências
indesejadas e podendo reconsiderá-las depois;
Quarto – Regra
da Verificação: garantir a totalidade das investigações para que nada fique omisso, com a segurança
de que todos os passos foram seguidos, sem margem a dúvidas.
Embora simples
e fáceis, as regras estabelecidas garantiam o pensamento científico sem
permitir que ficassem questões mal esclarecidas por mais complexas que se
apresentassem.
3.3 A MORAL PROVISÓRIA
No texto,
Descartes, traz que as questões morais não podiam ficar em suspenso até que
concluísse seu pensamento, cria, então, o que chama de Moral Provisória até que
a investigação cheque à verdadeira ciência da moral, baseada na natureza
humana. Não se permitia deixar de obedecer aos princípios acumulados pelo fato
de os terem colocado em dúvida até que pela investigação chegasse a novos
conceitos. Mesmo com os que tinha alguma resistência, não achava que devesse
suprimí-los criando um certo hiato entre o que era e o que poderia vir a ser.
“
E Enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora,
fazê-la demolir ou se ocupar a própria pessoa da arquitetura, além de ter
cuidadosamente traçado o projeto, mas é preciso também arranjar outra onde
comodamente se alojar enquanto durarem os trabalhos, assim eu, para não ficar
em absoluto hesitante nas minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sê-lo
nos meus juízos e para não deixar de viver desde então do modo mais feliz possível, criei para mim
uma moral provisória, consistindo somente de três ou quatro máximas, que
gostaria de vos expor” […] pag. 83
Primeiro:
obedecer as leis e os costumes do país, assim como a religião na qual havia
sido criado, pois era preciso relacionar-se com as pessoas, afastando-se o
máximo possível dos excessos e buscando
em primeiro passo considerar as opiniões mais sensatas no meio em que estava
inserido, mesmo que sua intenção fosse aperfeiçoá-las depois. Preferia observar
os comportamentos das pessoas à sua volta a ouvir os conceitos, pois achava que
nem sempre as pessoas divulgavam suas reais ideias ou delas possuíssem
consciência.
Segundo:
seguir firme as questões mesmo que suas escolhas se apresentassem como as mais
duvidosas, desde que a escolha tenha sido por elas. Achava que mesmo com toda
dúvida deveria ouvir a razão e escolher um caminho, pois pior que escolher
errado seria a ausência de escolha.
Se
não fosse possível a opinião verdadeira dever-se-ia seguir a mais provável que
sua razão indicasse e ao adotá-la não mais colocá-la em dúvida;
Terceiro:
dominar a si mesmo e seus sentimentos, mudando seus pensamentos e convicções,
para desejar o que é possível alcançar para não perder-se no que está distante
de sua capacidade. Como os filósofos abriam mão de bens e de uma vida
confortável para seguir a busca da verdade tendo como único mecanismo o seu
pensamento, ela achava que devia sentir-se feliz com o que conseguisse e o que
não viesse não deveria ser objeto de lamentações. O equilíbrio seria
consequência de não querer além do que fosse possível.
No
último conclui que após analisar as várias ocupações das pessoas nenhuma delas
lhe atraía a não ser permanecer na busca da verdade utilizando-se da sua razão
e do método que havia criado para si.
“
por fim, para conclusão dessa moral, decidi fazer um exame das diversas ocupações
que têm os homens nesta vida e tentar escolher a melhor; e sem pretender
dizer nada das ocupações dos outros,
pensei que não podia fazer melhor que
continuar naquela mesma em que estava, isto é, empregar toda a minha vida a
cultivar a razão e avançar o máximo que pudesse no conhecimento da verdade,
seguindo o método que me havia prescrito” […] pag. 85.
O
fundamento do método para Descartes é que só se chega à verdade pelo caminho
correto e objeto correto, caso contrário haverá conclusões equivocadas. Não
basta possuir um espírito bom, mas é necessário aplicá-lo de forma correta.